Excelente texto do Enderson Rafael: "Bimotores leves: Ilusão Fatal " que aborda um assunto extremamente importante e pouco debatido, a perda de motor em aviões bimotores leves. Segue o texto na íntegra:
Sim, o Seneca I voa com um motor só. Pero no mucho.
“Por que um avião multimotor precisa de dois motores? Porque não conseguiria voar com apenas um, essa é a razão.” A primeira frase do livro “The Complete Multi-Engine Pilot”, escrito por Bob Gardner e editado pela ASA é um dos livros usados na formação dos pilotos MLTE na FAA, e já de cara desmistifica a ilusão que todo piloto tem ao subir o degrau seguinte na formação de quem começou nos monomotores. Dois motores lhe dão mais razão de subida, mais velocidade em cruzeiro, e mais opções caso ocorra uma pane, mas não são garantia de muita coisa dependendo da aeronave que você voar.
Eu estava para escrever este texto há tempos, mas só sentei para fazê-lo após ler o excelente artigo sobre o assunto do Comandante David Branco, Inspac que comenta com espanto quantos pilotos de aeronaves leves não dominam as variáveis do avião que operam – o que explica, em grande parte, porque esse tipo de aeronave se acidenta com tanta frequência no Brasil. Assunto exaustivamente estudado no curso do MLTE da FAA, foi o primeiro texto em português sobre o assunto que achei. Aqui vai o segundo.
Primeiro ponto desta história: os “light twins”. São classificados com “bimotores leves” aeronaves abaixo de 6000 libras de peso máximo de decolagem. Ou seja, Senecas, Barons, Dutchess, Seminoles, e seus respectivos nomes brasileiros. Por certificação, eles não são obrigados a subir ou manter altitude se perderem um motor. O que eles sim são obrigados é a manterem o controle na sua, se for o caso, descida. E voar um avião multi é, na verdade, um desafio de controle.
Um ótimo exemplo é o Seneca I – que se você reparar bem, é um Cherokee Six com dois motores. Seu antecessor, tinha um único motor de 300HP. Se você perdesse o motor no Cherokee, restava escolher um lugar menos ruim para pousar, e isso vale para todos os monomotores, e a falta de opções dá certa facilidade na decisão de um piloto ao enfrentar essa pane. Mas com mais poder, vem mais responsabilidade. O Seneca I, com dois motores de 200HP cada, ao perder um deles, vira um monstrengo totalmente diferente de um Cherokee sem motor nenhum. A Piper ainda foi bacana de colocá-los girando um para cada lado, anulando o “motor crítico”, mas ainda assim, poucas coisas são tão desafiadoras quanto uma pane mono em um avião com performance tão sofrível.
Afinal, apesar de ter carga paga semelhante ao Cherokee de 300HP, um Seneca em pane mono, tem um motor de 200HP oferecendo potência fora do eixo da aeronave, outro com zero HP que pesa 350 libras sendo carregado, e enquanto não for embandeirado, causando um tremendo arrasto extra. Então, se você achava que um Seneca de 400HP, ao perder um motor, perdia 50% da performance, sinto muito: na verdade, ele perde em torno de 89% de performance. Viu como era uma ilusão?
Mas por que tanto? Existem 12 fatores que influenciam na VMC (velocidade mínima de controle), e eu não falarei de todos. Mas pense comigo em alguns e você já matará a charada da perda absurda de performance – que acomete todos os light twins sem exceção, em maior ou menor grau. O funcionamento do motor gera um torque, no caso do Seneca, de maneira que puxa o avião pra cima do motor bom. E essa é apenas uma das mais óbvias das forças com as quais você terá que lidar, e juntamente com uma aeronave mais pesada, uma das poucas que lhe ajudará em uma pane mono - isso mesmo, assim como é difícil pra você tirar uma aeronave pesada do seu curso, também é difícil pro motor que sobrou fazê-lo. Existe outra, chamada vento relativo acelerado: o motor que está funcionando, e que está instalado em frente a asa, acelera o ar que passa por ela, criando mais sustentação naquela asa. Essa é uma das que vai lhe atrapalhar, pois fará o avião tender a rolar pra cima do motor que morreu. O próprio empuxo assimétrico também vai tender a jogar o avião pro lado do motor ruim. E mais oito fatores que não esmiuçarei aqui, assim como o P-factor, força que age num disco de rotação das pás da hélice de um motor quando você inclina o avião para cima – coisa que acontecerá naturalmente à medida que a velocidade cai e o ângulo de ataque aumenta. Faltam sete fatores agora. Enfim, esses doze fatores foram criados para a certificação da FAA, e a aeronave, para ser aprovada, tem que passar nestes quesitos, demonstrando não que possa subir ou manter altitude, mas que possa manter o controle direcional após a perda de um dos motores. O fato do ar estar turbilhonado atrás do motor que falhou e está molinando – carregando consigo os clindros, o eixo do motor, e criando quase que um escudo para o vento do tamanho do disco das pás, faz a sustentação daquela asa diminuir, e o fato de aeronave estar voando desalinhada com sua trajetória, aumenta o arrasto, e isso vai degradando sua performance jogando o avião pra cima do motor ruim. Faltam quatro.
Na prática, ao ser pego de surpresa por uma falha de motor, duas coisas acontecerão: sua velocidade será drenada pelo arrasto a mais, e potência a menos, e você vai precisar controlar o avião para mantê-lo indo pra onde você quer. Vamos estudar uma possibilidade: em cruzeiro, a mais simples. Algum barulho estranho apareceu, ou pior, o barulho normal desapareceu, e o avião começa a suavemente oscilar, e sua velocidade começa a diminuir. Há uma série de medidas que você tentará para religar o motor, para já escolher um aeroporto de alternativa, mas vamos focar no que será feito primeiro: recobrar o controle sobre a aeronave.
Aviões com velocidades de estol superiores a 61 nós – caso do Seneca – devem ser capazes de manter uma razão positiva de subida a 5 mil pés. Mas isso é altitude de densidade. Se for um dia quente o suficiente em São Paulo, estes 5 mil pés de altitude de densidade estarão quase no chão – apesar de o chão estar a 2650 pés. E isso, com o motor embandeirado. Então, identificada a pane, você seguirá o checklist – que neste caso, tem itens de memória devido à urgência da natureza do problema. Mistura rica, passo todo à frente, manetes todas à frente, trem recolhido, flaps recolhidos, bombas elétricas de combustível ligadas. Quando tive minha pane mono, esse último item resolveu a pane: a bomba mecância havia quebrado, e a elétrica sendo ligada trouxe o motor de volta. Mas e se não resolvesse? Agora você tem toda a potência disponível no motor bom, resta descobrir qual deles é o bom, afinal, olhando pra fora você vê os dois girando. Aí vem “dead foot, dead engine”. Instintivamente você dará pedal pro lado do motor bom e rolará o avião também pro lado do motor bom, afinal, isso manterá o voo controlado. Ao constatar qual dos seus pés não está fazendo força, você saberá qual motor morreu. Dali pra frente, você tentará religá-lo com os recursos que tem, como alternate air e cross-feed, e se não conseguir, irá embandeirá-lo. Importante relembrar que essa é uma pane em cruzeiro, quando há tempo e condições de tentar resolver o problema. A baixas altitudes, você pula o troubleshoot direto pra embandeirar o motor ruim, num procedimento que deve levar não mais que alguns segundos.
A boa notícia é que o próprio avião vai aos poucos se aproximar da famosa “blue line”, conhecida como Vyse, ou seja, melhor razão de subida monomotor. Então seu trabalho, em termos de velocidade, será manter o avião acima dessa linha azul marcada no velocímetro. A má notícia é que não necessarimente o avião vai subir quando mantida esta velocidade, podendo até vir a descer lentamente. E aí, mantenha a velocidade acima da linha vermelha, que é ninguém menos que a famosa VMC.
A VMC, ou “velocidade mínima de controle” não é o fim do mundo. Não quer dizer que você vai emborcar o avião e morrer se voar abaixo dela. Isso acontecerá se você estolar o avião. Abaixo da VMC – e tudo bem, no Seneca ela é quase junto com a velocidade de estol – você só não vai escolher pra onde o avião vai: justamente o que o fabricante se esforçou tanto pra lhe garantir mesmo em hora tão ingrata. Acima dela, embora demande esforço e técnica, você escolhe pra que lado o avião vai – ainda que, como vimos, não necessariamente escolha se ele vai descer ou não.
Ou seja, manter a aeronave acima da VMC lhe dá no mínimo o mesmo que um monomotor em pane lhe daria: escolher pelo menos onde vai pousar. Mas você há de convir que poucos monomotores sem motor voariam tão longe e bem quanto um Seneca com um motor só. Logo, apesar dos pesares, eu ainda prefiro voar com dois motores.
Agora que percebemos como perder um motor influencia na performance de um bimotor leve, vamos ver alguns exemplos: considerando apenas condições ISA – que sabemos, não é nada conservador quando falamos de Brasil – e com o piloto agindo corretamente e embandeirando o motor ruim. Espere performances bem mais frustrantes do seu avião, não tão novo quanto o que o piloto de teste – também provavelmente mais habilidoso que você – usou.
Com peso máximo, e com os dois motores, um Seneca I sobe a 1860 pés por minuto. Com um motor só, 190 pés por minuto, 89% menos. O todo poderoso Navajo pressurizado, com dois motores a pleno, ganha 1740ft/min. Na condição mono, apenas 240ft/min, uma queda de 86%. Nem o todo potente Baron escapa da estatística: seus 1694 ft/min numa subida bimotor viram meros 342 ft/min quando mono, uma redução de 80%. Se isso não é assustador o suficiente, pense numa tarde ensolarada em Brasília. Estamos a 3mil pés de elevação do campo, e faz 35oC no planalto central. Ajuste altímetro, 1014Hpa. Alguns cálculos simples e temos uma altitude de densidade de 5900 pés. Você está no peso máximo do seu Seneca I, 4200 libras, e pela distância do destino, decolar com menos combustível está fora de questão. E aí, você decola?
Bom, pode decolar. Com os dois motores, você subirá pra sua altitude de cruzeiro a 1000ft/min com 103mph de Vy. Mas agora vem a decisão crucial, subir como?
Fui treinado no Brasil a decolar, e tão logo tenha razão positiva, recolher o trem e manter a razão em 500ft/min, acelerando o avião pra 120kt – e diminuindo o tempo total de voo, de certa forma. Isso, como vocês podem perceber claramente, sacrifica a única moeda de troca que um piloto tem de verdade. Para ver a questão com mais carinho, vamos supôr que você decolou, segundos depois recolheu o trem e mantendo 500ft por minuto, voou por dois minutos. A 120kt, você está a 1000 pés sobre o terreno a quase duas milhas da pista quando perde o motor, a velocidade rapidamente é drenada pelo arrasto parasita, que aumenta ao quadrado da velocidade, e logo logo você já está de volta às 105mph.
É nessa hora que você vai lembrar dos cálculos da Vyse, cujos resultados devem estar à mão se você for um piloto cuidadoso. Com os dois motores subíamos a 1000ft/min se mantivéssemos a Vy, mas e com apenas um? Usando esses dados que temos de altitude de densidade e peso da aeronave, mantendo a Vyse que a carta nos dá de 105mph, exatamente sobre a blue line, temos um climb de -70ft/min. Isso mesmo, nosso climb é negativo. Digamos que em um minuto estamos voltando pra pista, vamos levar 3 minutos mais ou menos até chega na cabeceira, e claro, já teremos perdido quase metade da altitude que tínhamos quando tivemos a pane, a meros 500ft. Agora eu pergunto: valeu a pena acelerar logo de cara? E mais ainda, recolher o trem tão cedo pra quê?
Nos Estados Unidos, quando comecei a voar o Seneca pela primeira vez, fui ensinado a manter a Vy até estar alto o suficiente para valer a pena acelerar. Outra coisa, duas condições se somavam para o recolhimento do trem: “positive rate, out of usable runway”. Ou seja, manter o trem embaixo na subida mantendo a Vy nem aumenta nem diminui o arrasto, e você já está com potência máxima. Então, que tal esperar até não ter mais pista pra pousar em frente? Nossa decolagem de Brasília, apesar de longa, certamente usou muito menos da metade da pista – nessas condições, sem vento, seriam 450m de corrida de decolagem. Mantendo a Vy pelos mesmos dois minutos do exemplo anterior, estaríamos agora a 2mil pés sobre o terreno, o dobro da altitude, e muito mais perto da cabeceira oposta. Não teria sido melhor negócio?
Como comentamos, a única moeda de troca que um piloto tem quando está sem potência, mas precisa de velocidade, é a altitude. Então, faz bem mais sentido priorizá-la, em especial nos primeiros minutos do voo. De resto, é treinar sempre que possível para que seu corpo reaja sozinho e corretamente à assimetria de potência de uma pane mono e claro, nunca negligenciar os cálculos de peso e balanceamento e performance de nenhum avião, em especial os traiçoeiros bimotores leves.
Enderson Rafael.